A QUESTÃO DA POBREZA

INTRODUÇÃO

A pobreza só pode ser entendida em função da riqueza e dos recursos de que dispõe uma sociedade para viver e se reproduzir. A pobreza existe quando se supõe que os bens provenientes da natureza e do trabalho não são suficientes para satisfazer as necessidades vitais e sociais de todos. A pobreza é, portanto, um conceito relativo.
Por mais que economistas, biólogos e antropólogos tenham ten­tado criar modelos universais de consumo médio para a vida e sobre-vida do homem, em qualquer tempo e lugar, tais tentativas só resulta­ram em estereótipos. Na realidade, cada grupo, em função do meio
natural, dos produtos disponíveis e do seu estilo de vida, organiza m produção e reprodução de sua vida biológica e social. É em rela^» a essa organização que podemos avaliar a pobreza e a riqueza, a ae-ntíria e a abundância.
Não é apenas pela quantidade bruta de bens produzidos ou át energias consumidas por uma população que podemos caracteriz» uma sociedade como pobre ou rica. Só existe a pobreza em relaçãc i riqueza, isto é, só existe carência de alimentos, moradia, saúde, quan­do parte da população tem pouco ou nenhum acesso aos bens qne a sociedade efetivamente produz ou pode produzir.
Desse modo, a constatação de que sempre existiu pobreza ao mundo não decorre necessariamente de mau aproveitamento dos re­cursos naturais e humanos, mas do fato de que esses recursos, de alguma maneira, são mal distribuídos" socialmente.
A pobreza, portanto, não pode ser um conceito clássificatórk» proveniente da comparação entre sociedades diferentes tendo em visa o padrão das modernas sociedades de consumo. Ela se refere às con­dições de produção material de cada sociedade — seus recursos, bens, necessidades sociais — e à maneira pela qual se estabelece a pamcâ-pação dos indivíduos na distribuição do produto social. Existem so­ciedades que, apesar de contarem com recursos limitados, organizam formas mais igualitárias de distribuição dos bens sociais e não poderá, portanto, ser consideradas pobres, num sentido absoluto. O geógrafo Melhem Adas lembra, a respeito, o caso do Butão, pequeno país asiá­tico, cuja renda per capita é baixa e, no entanto, seus habitantes vi­vem em condições melhores do que as de muitos países de renda maior. pois dedicam-se a atividades que lhe suprem as necessidades básicas de alimentação e vestuário, sem precisarem pagar por esses bens.
Da mesma forma, é incorreto considerar as sociedades indígenas brasi­leiras como "pobres" tomando-se o padrão da civilização pré-colco-biana do Peru e do México, por exemplo.

A POBREZA CONTEMPORÂNEA
Uma vez compreendido que a pobreza só existe em relaçãc a uma sociedade determinada, percebe-se que ela está vinculada às for­mas de distribuição dos bens sociais e à participação dos membros de uma sociedade nas atividades por ela valorizadas e às quais ela aspiram. A distribuição desigual desses bens é que em-última instância configura a pobreza. Assim, podemos afirmar que a pobreza, enten­dida desse modo, muito embora se faça presente em todas as épocas e nas mais diversas sociedades, jamais alcançou a proporção em que se apresenta na sociedade industrial. Antes da sociedade industrial, nunca se conheceu tão vasta quantidade de bens em circulação ao lado de tão desigual distribuição.
Assim, mesmo considerando a pobreza um conceito específico de análise estrutural de cada sociedade, se tomarmos as sociedades ao longo da história verificamos que nunca a pobreza adquiriu caráter tão agudo como na época contemporânea. Ê alarmante o contraste en­tre o acúmulo de bens produzidos, aos quais os indivíduos aspiram, e o número de seres que têm pouca ou nenhuma possibilidade de acesso a tais bens. Esse estado de carência e pobreza é agravado por toda a ideologia da sociedade industrial capitalista, baseada num de­senfreado apelo ao consumismo, ao desfrute do conforto, do bem-estar e da sofisticação proporcionados pela vida moderna.
É essa flagrante contradição que faz da pobreza uma questão contemporânea e, nesse sentido, nova na história humana: uma cres­cente pobreza em meio a uma incalculável acumulação de bens. Em meio a sociedades de fartura e opulência, às quais são convidados todos os possíveis consumidores, a pobreza da maioria se torna uma contradição gritante, concreta e intolerável.
A RESPONSABILIDADE DO ESTADO
Além de sua agudeza, de seu crescimento e das contradições que expressa, a pobreza tem uma particularidade: ela não é vista como re­sultado da ganância ou dos privilégios de que desfrutam os ricos, mas como consequência da má administração do Estado.
Na segunda metade do século XIX, as revoluções nacionalistas, principalmente na Alemanha e na Itália (1871), transformaram o Estado não no simples guardião dos direitos naturais do homem, nem no controlador das condições de liberdade das relações sociais, como pregava o liberalismo, mas na instituição responsável por toda a eco­nomia nacional, planejada e dirigida. O Estado alemão unificado sur­giu preliminarmente da união aduaneira entre principados. A pobreza da nação deixou, desde então, de ser vista como consequência das relações desiguais entre os homens para ser percebida como fruto de mau planejamento e má administração da vida económica nacional.
Representa bem essa situação a frase de Marx a respeito do di­reito ao trabalho assegurado pela Constituição francesa de 184£ "Que Estado moderno não alimenta de uma forma ou de outra a seoï pobres?", pergunta ele ironicamente se referindo à massa de inc:-gentes que ocupava Paris na época da proclamação da Segunda Re­pública Francesa.
No século XX, sobretudo após a Primeira Guerra Mundial, i cobrança de impostos, o poder crescente do Estado e a ampliação òe suas funções tiraram da classe enriquecida pelo comércio, pela indús­tria e pelas atividades financeiras a responsabilidade para com a pc-breza e a indigência. O Estado se transformou em empresa, em empre­gador, financiador, responsável pela saúde pública, promotor de bem-estar social, encarregado do estabelecimento de preços e salárioí da administração do capital que arrecada via impostos. A ele se passou a atribuir a responsabilidade pelas condições de vida da popu­lação.

A RESPONSABILIDADE DO SISTEMA
As teorias económicas, políticas e sociais também se preocuparan com a pobreza, atribuindo-a não só à má administração do Estaõc como ao próprio sistema capitalista de produção.
Malthus e Ricardo afirmaram que o desenvolvimento do capita­lismo industrial alcançaria um nível, em que os recursos mundkií estariam esgotados, e as populações seriam assoladas pela fome.
Karl Marx,. no Manifesto do Partido Comunista, afirmou que -desenvolvimento industrial levaria
necessariamente à concentração õc riquezas nas mãos de uma parcela cada vez menor da populaçãc enquanto o resto ficaria reduzido a um nível de subsistência.
Alfred Marshall, em 1927, também se preocupou com a degra­dação em que vivia parte da humanidade, degradação manifestadapelo trabalho demasiado, falta de instrução e saúde e baixa expectaúvide vida.
Se, por um lado, essas teorias tinham um caráter de denúncia. se espalharam o pessimismo e a revolta e, nos melhores casos, levi-ram a uma desconfiança e a um ceticismo diante do desenvolvimef» industrial, elas também tiraram dos agentes sociais, dos próprios indi­víduos, a responsabilidade pelas desigualdades sociais. Assim ecoe ocorrera com o Estado, agora é o sistema produtivo, funcionando por princípios impessoais, o responsável pela pobreza da maioria e pela riqueza de alguns.
Aliás, encontramos na história das ideias da sociedade moderna e contemporânea a constante tendência de eximir de responsabilidade os indivíduos diretamente implicados nas relações desiguais da socie­dade. Se, na Idade Média, o lucro e a usura eram considerados pe­cados de responsabilidade única e exclusiva de quem os praticava, o calvinismo, como bem demonstrou Weber, tratou de considerar a riqueza como sinal do agrado de Deus e da predestinação à salvação eterna. As atuais teorias, condenando o Estado e o capitalismo, tam­bém eximem de responsabilidade, apesar de seu caráter de denúncia, os indivíduos implicados nas relações sociais concretas.


A POBREZA E A CAPACIDADE INDIVIDUAL
Outra forma de camuflar o problema da pobreza foi a tendência à crescente burocratização. A industrialização criou, no interior das empresas, diversos cargos hierarquizados entre os quais, nos mais altos escalões, estão trabalhadores diretamente responsáveis pela administração. São os chamados "executivos" ou "colarinhos brancos", que não só dirigem as empresas como efetivamente recebem altos salários, que aumentam à medida que a produção se expande.
Em termos ideológicos, esse grupo de empregados se transforma no exemplo vivo de que o desenvolvimento industrial permite elevar o padrão de vida dos trabalhadores. Cria-se a impressão de que tal privilégio pode ser estendido ao operariado como um todo.
De fato, nos países industrializados como Alemanha, Inglaterra, França, EUA, o operariado industrial teve significativa melhora em seu nível de vida, ocasionada em parte pêlos lucros obtidos pelas empresas sediadas nesses países com suas filiais no Terceiro Mundo.
Para todos os ideólogos e pesquisadores aplicados em defender o sistema capitalista, a pobreza, em vista dessa ascensão social, se transforma numa questão de competência. Só se mantêm em níveis salariais baixos aqueles trabalhadores que não demonstraram adestra­mento adequado e qualidades pessoais relevantes.
Para tais ideólogos, nem o Estado nem o sistema são culpados pelo padrão de vida de grande parte da população, mas a desigual­dade natural entre as capacidades humanas. Exemplos não faltam: inúmeras biografias" traçam o caminho feérico da vida desses self-made men, como Pele, por exemplo.
POBREZA CRESCENTE E INCÓMODA
Tratada como resultado da incompetência do Estado ou da inca­pacidade individual, a pobreza não deixou, entretanto, de aumentar e de se tornar mais evidente, principalmente nas grandes concentra­ções urbanas e de maneira significativa nos países do Terceiro Mundc.
A instrução oficial se tem mostrado impotente, cresce a evasão escolar e os índices de repetência. A saúde pública cai constantemec-te na qualidade de serviços e pouco se tem feito no sentido de asse­gurar uma vida mais longa e saudável aos cidadãos.
A especulação imobiliária tem jogado a população carente para as zonas periféricas e os terrenos desocupados têm sido usados por populações carentes. Crescem as favelas, o subemprego, a criminali­dade, a mendicância
Uma grande parte da população não usufrui nenhum dos bene­fícios ou confortos trazidos com a expansão da produção: são pessoas que não completam os estudos; trabalham desde cedo em serviçcs braçais de baixa remuneração; não têm assistência médica nem tra­balho regular; não desfrutam das redes de saneamento básico; nàc frequentam cinemas; não têm conta bancária; alimentam-se precaiítmente; vestem-se como indigentes e só consomem objetos de segunda mão, que lhes chegam através de movimentos assistenciais.
Alguns teóricos definem essa população pobre pela pouca pro­dutividade que proporcionam, a pouca renda com que sobrevivem, a ausência de bens e de reservas quer sob a forma de dinheiro quer sob a forma de provisões. Abastecem-se parcamente e a pequenos intervalos, o que faz sua subsistência mais custosa.
Outros pesquisadores, mais preocupados com os valores culturais, definem a população pobre como um grupo que, mesmo tendo intro-jetado valores da sociedade burguesa como o casamento monogâmico e legal, o trabalho regular e a participação na vida pública, mostra no comportamento efetivo completa dissonância em relação a eles: as uniões são periódicas e ilegítimas, o trabalho irregular e com alta porcentagem de subemprego, isto é, trabalhos ocasionais e autónomos, biscates enfim.
A presença constante, próxima e crescente dessa massa de pobres que, segundo alguns cálculos, chega a 2/3 da população do Terceiro Mundo, incomoda e constrange por todos os motivos: porque demons­tra a ineficiência da administração do Estado do qual se espera toma­da de medidas racionais; porque parece crescer a quantidade de pessoas excluídas do contingente de consumidores nacionais; porque se teme que essa população crescente se organize e aja politicamente contra um sistema que os marginaliza; porque se constitui num sin­toma evidente do malogro de uma sociedade que se pressupõe orien­tada para o bem comum.
URBANIZAÇÃO E CRIMINALIDADE
O desconcertante fenómeno do aumento da pobreza crónica temsido explicado como efeito de atração dos centros urbanos sobre umsetor agrário também empobrecido. As taxas indicam que cerca de35% da população pobre dos centros urbanos é composta de mi­grantes.
Essa explicação é inquietante não por mostrar que o setor agrá­rio tende a expelir trabalhadores, pois essa parece ser uma caracte­rística do processo de industrialização e de racionalização do traba­lho agrícola com o uso de máquinas e de mão-de-obra assalariada sazonal. Ela é inquietante porque mostra que, ao decréscimo de utili­zação da mão-de-obra no setor agrário, não corresponde proporcional aproveitamento dessa mesma mão-de-obra na indústria. Logo, qualquer cidadão conclui que mais gente passa a depender dos serviços municipais e de uma expansão de produção. Por outro lado, essa ex­pansão não pode resultar de um aumento da população composta de pessoas sem qualquer rendimento ou possibilidade de fazer aumeniïr a demanda de produtos.
À percepção de incompetência do sistema económico e polític.; se soma o desconforto de se saber que, nos grandes centros, milhares de pessoas não se encontram sob a vigilância das instituições social; vivem como podem, à deriva e à revelia dos planejamentos oficiais Cria-se, em relação a essa população, um sentimento de desconfiança e de insegurança. A relação que se estabelece entre seu crescimen:; e o aumento da criminalidade nos grandes centros urbanos vai c; 8£nso comum ao estudo científico. "
O perfil social dos criminosos também ajuda a reforçar essa associação entre pobreza e criminalidade: os autores dos crimes que sãc oficialmente denunciados são pessoas geralmente analfabetas, traba­lhadores braçais e predominantemente de cor negra.
Entretanto, sociólogos mais cuidadosos têm estabelecido outras relações. Constata-se que inúmeros crimes não são denunciados, que as estatísticas apenas revelam aquela população que, tida de inicio como suspeita, é sistematicamente controlada. Existe, portanto, em relação aos dados uma distorção provocada pela "suspeita sistemáti­ca" como a definiu o cientista social brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro. Segundo essa ótica, é contra a população pobre, estigmatizada que se conduz a prática policial, a investigação e as formas de punição. Conclui o autor citado que a prática policial preconceituosa, somada à desproteção das classes subalternas, torna a relação entre pobreza e criminalidade uma profecia autocumprida. Forma-se um círculo vi­cioso em que o indivíduo, para ter trabalho, precisa ter domicílio, registro, carteira profissional e uma situação civil legal. Sem trabalho, ele passa a fazer parte dos pobres e marginalizados sob constante vigilância policial, ,
O "EXERCITO DE RESERVA"
Há ainda outro aspecto a ser considerado. Essa população pobre e carente constitui o que Marx chamou de "exército industrial de reserva", isto é, um contingente populacional subempregado, mobili­zável para o trabalho sempre que a luta por melhores salários dentro das empresas chega a um ponto crítico.
Semiqualíficado, ou sem qualificação nenhuma, esse reduto de mão-de-obra está sempre pronto a aceitar salários mais baixos em troca de uma situação regular e um rendimento fixo. Vimos que o subemprego desses homens e mulheres não depende de uma incapaci­dade ao trabalho ou de uma indisposição para com o trabalho, mas de falta de elasticidade na oferta de emprego da indústria. Em épocas de crise, quando .os operários reivindicam melhores salários ou ade­rem as greves, trabalhadores empregados podem ser substituídos por essa mão-de-obra menos exigente e mais carente.
Sobre essa população já pesam o preconceito e o estereótipo da marginalidade. Além disso, sendo virtual competidora dos operários já integrados às indústrias, ela é discriminada também por estes. Existe preconceito dos próprios operários em relação a essa população mais pobre e semi-empregada, de quem querem se diferenciar.
Trabalhos que analisam o quanto a população operária é a favor da pena de morte mostram que essa adesão à repressão às populações carentes e faveladas decorre, a princípio, do fato de que os trabalha­dores são vítimas do banditismo. Além disso, existe o desejo do tra­balhador regular de se distinguir dessa "massa marginal" e estigma­tizá-la como perigosa e suspeita.
Por ocasião dos movimentos operários de metalúrgicos do ABC paulista, desde o final dos anos 1970, fotos nas primeiras páginas dos jornais mostravam que, após um grande número de demissões, filas de candidatos se apinhavam em frente das indústrias, prontos para ocuparem os lugares vagos. Fatos como esse tendem a instigar o conflito entre os trabalhadores regulares e o "exército de reserva".
Na Europa, assiste-se também à discriminação efetuada pêlos grandes sindicatos franceses e ingleses contra trabalhadores portugue­ses e espanhóis, que, segundo lideranças sindicais, "perturbam" o movimento operário por estarem sempre dispostos a trabalhar por me­nores salários.
Portanto, mesmo nas classes despossuídas, a pobreza inspira suspeita e ameaça. É por isso também que a Sociologia se dedica cada vez mais ao estudo da pobreza. Para perceber sua causa, sua dinâ­mica e sua influência no modo de pensar e ser das classes sociais.
Afinal, num mundo "regido" pêlos princípios democráticos eliberais, a pobreza é também um pouco de cada um, um espelho noqual percebemos, antes de tudo, a nossa própria fragilidade e a nossaprópria miséria.

Nenhum comentário:

Seguidores