A QUESTÃO DA POBREZA

INTRODUÇÃO

A pobreza só pode ser entendida em função da riqueza e dos recursos de que dispõe uma sociedade para viver e se reproduzir. A pobreza existe quando se supõe que os bens provenientes da natureza e do trabalho não são suficientes para satisfazer as necessidades vitais e sociais de todos. A pobreza é, portanto, um conceito relativo.
Por mais que economistas, biólogos e antropólogos tenham ten­tado criar modelos universais de consumo médio para a vida e sobre-vida do homem, em qualquer tempo e lugar, tais tentativas só resulta­ram em estereótipos. Na realidade, cada grupo, em função do meio
natural, dos produtos disponíveis e do seu estilo de vida, organiza m produção e reprodução de sua vida biológica e social. É em rela^» a essa organização que podemos avaliar a pobreza e a riqueza, a ae-ntíria e a abundância.
Não é apenas pela quantidade bruta de bens produzidos ou át energias consumidas por uma população que podemos caracteriz» uma sociedade como pobre ou rica. Só existe a pobreza em relaçãc i riqueza, isto é, só existe carência de alimentos, moradia, saúde, quan­do parte da população tem pouco ou nenhum acesso aos bens qne a sociedade efetivamente produz ou pode produzir.
Desse modo, a constatação de que sempre existiu pobreza ao mundo não decorre necessariamente de mau aproveitamento dos re­cursos naturais e humanos, mas do fato de que esses recursos, de alguma maneira, são mal distribuídos" socialmente.
A pobreza, portanto, não pode ser um conceito clássificatórk» proveniente da comparação entre sociedades diferentes tendo em visa o padrão das modernas sociedades de consumo. Ela se refere às con­dições de produção material de cada sociedade — seus recursos, bens, necessidades sociais — e à maneira pela qual se estabelece a pamcâ-pação dos indivíduos na distribuição do produto social. Existem so­ciedades que, apesar de contarem com recursos limitados, organizam formas mais igualitárias de distribuição dos bens sociais e não poderá, portanto, ser consideradas pobres, num sentido absoluto. O geógrafo Melhem Adas lembra, a respeito, o caso do Butão, pequeno país asiá­tico, cuja renda per capita é baixa e, no entanto, seus habitantes vi­vem em condições melhores do que as de muitos países de renda maior. pois dedicam-se a atividades que lhe suprem as necessidades básicas de alimentação e vestuário, sem precisarem pagar por esses bens.
Da mesma forma, é incorreto considerar as sociedades indígenas brasi­leiras como "pobres" tomando-se o padrão da civilização pré-colco-biana do Peru e do México, por exemplo.

A POBREZA CONTEMPORÂNEA
Uma vez compreendido que a pobreza só existe em relaçãc a uma sociedade determinada, percebe-se que ela está vinculada às for­mas de distribuição dos bens sociais e à participação dos membros de uma sociedade nas atividades por ela valorizadas e às quais ela aspiram. A distribuição desigual desses bens é que em-última instância configura a pobreza. Assim, podemos afirmar que a pobreza, enten­dida desse modo, muito embora se faça presente em todas as épocas e nas mais diversas sociedades, jamais alcançou a proporção em que se apresenta na sociedade industrial. Antes da sociedade industrial, nunca se conheceu tão vasta quantidade de bens em circulação ao lado de tão desigual distribuição.
Assim, mesmo considerando a pobreza um conceito específico de análise estrutural de cada sociedade, se tomarmos as sociedades ao longo da história verificamos que nunca a pobreza adquiriu caráter tão agudo como na época contemporânea. Ê alarmante o contraste en­tre o acúmulo de bens produzidos, aos quais os indivíduos aspiram, e o número de seres que têm pouca ou nenhuma possibilidade de acesso a tais bens. Esse estado de carência e pobreza é agravado por toda a ideologia da sociedade industrial capitalista, baseada num de­senfreado apelo ao consumismo, ao desfrute do conforto, do bem-estar e da sofisticação proporcionados pela vida moderna.
É essa flagrante contradição que faz da pobreza uma questão contemporânea e, nesse sentido, nova na história humana: uma cres­cente pobreza em meio a uma incalculável acumulação de bens. Em meio a sociedades de fartura e opulência, às quais são convidados todos os possíveis consumidores, a pobreza da maioria se torna uma contradição gritante, concreta e intolerável.
A RESPONSABILIDADE DO ESTADO
Além de sua agudeza, de seu crescimento e das contradições que expressa, a pobreza tem uma particularidade: ela não é vista como re­sultado da ganância ou dos privilégios de que desfrutam os ricos, mas como consequência da má administração do Estado.
Na segunda metade do século XIX, as revoluções nacionalistas, principalmente na Alemanha e na Itália (1871), transformaram o Estado não no simples guardião dos direitos naturais do homem, nem no controlador das condições de liberdade das relações sociais, como pregava o liberalismo, mas na instituição responsável por toda a eco­nomia nacional, planejada e dirigida. O Estado alemão unificado sur­giu preliminarmente da união aduaneira entre principados. A pobreza da nação deixou, desde então, de ser vista como consequência das relações desiguais entre os homens para ser percebida como fruto de mau planejamento e má administração da vida económica nacional.
Representa bem essa situação a frase de Marx a respeito do di­reito ao trabalho assegurado pela Constituição francesa de 184£ "Que Estado moderno não alimenta de uma forma ou de outra a seoï pobres?", pergunta ele ironicamente se referindo à massa de inc:-gentes que ocupava Paris na época da proclamação da Segunda Re­pública Francesa.
No século XX, sobretudo após a Primeira Guerra Mundial, i cobrança de impostos, o poder crescente do Estado e a ampliação òe suas funções tiraram da classe enriquecida pelo comércio, pela indús­tria e pelas atividades financeiras a responsabilidade para com a pc-breza e a indigência. O Estado se transformou em empresa, em empre­gador, financiador, responsável pela saúde pública, promotor de bem-estar social, encarregado do estabelecimento de preços e salárioí da administração do capital que arrecada via impostos. A ele se passou a atribuir a responsabilidade pelas condições de vida da popu­lação.

A RESPONSABILIDADE DO SISTEMA
As teorias económicas, políticas e sociais também se preocuparan com a pobreza, atribuindo-a não só à má administração do Estaõc como ao próprio sistema capitalista de produção.
Malthus e Ricardo afirmaram que o desenvolvimento do capita­lismo industrial alcançaria um nível, em que os recursos mundkií estariam esgotados, e as populações seriam assoladas pela fome.
Karl Marx,. no Manifesto do Partido Comunista, afirmou que -desenvolvimento industrial levaria
necessariamente à concentração õc riquezas nas mãos de uma parcela cada vez menor da populaçãc enquanto o resto ficaria reduzido a um nível de subsistência.
Alfred Marshall, em 1927, também se preocupou com a degra­dação em que vivia parte da humanidade, degradação manifestadapelo trabalho demasiado, falta de instrução e saúde e baixa expectaúvide vida.
Se, por um lado, essas teorias tinham um caráter de denúncia. se espalharam o pessimismo e a revolta e, nos melhores casos, levi-ram a uma desconfiança e a um ceticismo diante do desenvolvimef» industrial, elas também tiraram dos agentes sociais, dos próprios indi­víduos, a responsabilidade pelas desigualdades sociais. Assim ecoe ocorrera com o Estado, agora é o sistema produtivo, funcionando por princípios impessoais, o responsável pela pobreza da maioria e pela riqueza de alguns.
Aliás, encontramos na história das ideias da sociedade moderna e contemporânea a constante tendência de eximir de responsabilidade os indivíduos diretamente implicados nas relações desiguais da socie­dade. Se, na Idade Média, o lucro e a usura eram considerados pe­cados de responsabilidade única e exclusiva de quem os praticava, o calvinismo, como bem demonstrou Weber, tratou de considerar a riqueza como sinal do agrado de Deus e da predestinação à salvação eterna. As atuais teorias, condenando o Estado e o capitalismo, tam­bém eximem de responsabilidade, apesar de seu caráter de denúncia, os indivíduos implicados nas relações sociais concretas.


A POBREZA E A CAPACIDADE INDIVIDUAL
Outra forma de camuflar o problema da pobreza foi a tendência à crescente burocratização. A industrialização criou, no interior das empresas, diversos cargos hierarquizados entre os quais, nos mais altos escalões, estão trabalhadores diretamente responsáveis pela administração. São os chamados "executivos" ou "colarinhos brancos", que não só dirigem as empresas como efetivamente recebem altos salários, que aumentam à medida que a produção se expande.
Em termos ideológicos, esse grupo de empregados se transforma no exemplo vivo de que o desenvolvimento industrial permite elevar o padrão de vida dos trabalhadores. Cria-se a impressão de que tal privilégio pode ser estendido ao operariado como um todo.
De fato, nos países industrializados como Alemanha, Inglaterra, França, EUA, o operariado industrial teve significativa melhora em seu nível de vida, ocasionada em parte pêlos lucros obtidos pelas empresas sediadas nesses países com suas filiais no Terceiro Mundo.
Para todos os ideólogos e pesquisadores aplicados em defender o sistema capitalista, a pobreza, em vista dessa ascensão social, se transforma numa questão de competência. Só se mantêm em níveis salariais baixos aqueles trabalhadores que não demonstraram adestra­mento adequado e qualidades pessoais relevantes.
Para tais ideólogos, nem o Estado nem o sistema são culpados pelo padrão de vida de grande parte da população, mas a desigual­dade natural entre as capacidades humanas. Exemplos não faltam: inúmeras biografias" traçam o caminho feérico da vida desses self-made men, como Pele, por exemplo.
POBREZA CRESCENTE E INCÓMODA
Tratada como resultado da incompetência do Estado ou da inca­pacidade individual, a pobreza não deixou, entretanto, de aumentar e de se tornar mais evidente, principalmente nas grandes concentra­ções urbanas e de maneira significativa nos países do Terceiro Mundc.
A instrução oficial se tem mostrado impotente, cresce a evasão escolar e os índices de repetência. A saúde pública cai constantemec-te na qualidade de serviços e pouco se tem feito no sentido de asse­gurar uma vida mais longa e saudável aos cidadãos.
A especulação imobiliária tem jogado a população carente para as zonas periféricas e os terrenos desocupados têm sido usados por populações carentes. Crescem as favelas, o subemprego, a criminali­dade, a mendicância
Uma grande parte da população não usufrui nenhum dos bene­fícios ou confortos trazidos com a expansão da produção: são pessoas que não completam os estudos; trabalham desde cedo em serviçcs braçais de baixa remuneração; não têm assistência médica nem tra­balho regular; não desfrutam das redes de saneamento básico; nàc frequentam cinemas; não têm conta bancária; alimentam-se precaiítmente; vestem-se como indigentes e só consomem objetos de segunda mão, que lhes chegam através de movimentos assistenciais.
Alguns teóricos definem essa população pobre pela pouca pro­dutividade que proporcionam, a pouca renda com que sobrevivem, a ausência de bens e de reservas quer sob a forma de dinheiro quer sob a forma de provisões. Abastecem-se parcamente e a pequenos intervalos, o que faz sua subsistência mais custosa.
Outros pesquisadores, mais preocupados com os valores culturais, definem a população pobre como um grupo que, mesmo tendo intro-jetado valores da sociedade burguesa como o casamento monogâmico e legal, o trabalho regular e a participação na vida pública, mostra no comportamento efetivo completa dissonância em relação a eles: as uniões são periódicas e ilegítimas, o trabalho irregular e com alta porcentagem de subemprego, isto é, trabalhos ocasionais e autónomos, biscates enfim.
A presença constante, próxima e crescente dessa massa de pobres que, segundo alguns cálculos, chega a 2/3 da população do Terceiro Mundo, incomoda e constrange por todos os motivos: porque demons­tra a ineficiência da administração do Estado do qual se espera toma­da de medidas racionais; porque parece crescer a quantidade de pessoas excluídas do contingente de consumidores nacionais; porque se teme que essa população crescente se organize e aja politicamente contra um sistema que os marginaliza; porque se constitui num sin­toma evidente do malogro de uma sociedade que se pressupõe orien­tada para o bem comum.
URBANIZAÇÃO E CRIMINALIDADE
O desconcertante fenómeno do aumento da pobreza crónica temsido explicado como efeito de atração dos centros urbanos sobre umsetor agrário também empobrecido. As taxas indicam que cerca de35% da população pobre dos centros urbanos é composta de mi­grantes.
Essa explicação é inquietante não por mostrar que o setor agrá­rio tende a expelir trabalhadores, pois essa parece ser uma caracte­rística do processo de industrialização e de racionalização do traba­lho agrícola com o uso de máquinas e de mão-de-obra assalariada sazonal. Ela é inquietante porque mostra que, ao decréscimo de utili­zação da mão-de-obra no setor agrário, não corresponde proporcional aproveitamento dessa mesma mão-de-obra na indústria. Logo, qualquer cidadão conclui que mais gente passa a depender dos serviços municipais e de uma expansão de produção. Por outro lado, essa ex­pansão não pode resultar de um aumento da população composta de pessoas sem qualquer rendimento ou possibilidade de fazer aumeniïr a demanda de produtos.
À percepção de incompetência do sistema económico e polític.; se soma o desconforto de se saber que, nos grandes centros, milhares de pessoas não se encontram sob a vigilância das instituições social; vivem como podem, à deriva e à revelia dos planejamentos oficiais Cria-se, em relação a essa população, um sentimento de desconfiança e de insegurança. A relação que se estabelece entre seu crescimen:; e o aumento da criminalidade nos grandes centros urbanos vai c; 8£nso comum ao estudo científico. "
O perfil social dos criminosos também ajuda a reforçar essa associação entre pobreza e criminalidade: os autores dos crimes que sãc oficialmente denunciados são pessoas geralmente analfabetas, traba­lhadores braçais e predominantemente de cor negra.
Entretanto, sociólogos mais cuidadosos têm estabelecido outras relações. Constata-se que inúmeros crimes não são denunciados, que as estatísticas apenas revelam aquela população que, tida de inicio como suspeita, é sistematicamente controlada. Existe, portanto, em relação aos dados uma distorção provocada pela "suspeita sistemáti­ca" como a definiu o cientista social brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro. Segundo essa ótica, é contra a população pobre, estigmatizada que se conduz a prática policial, a investigação e as formas de punição. Conclui o autor citado que a prática policial preconceituosa, somada à desproteção das classes subalternas, torna a relação entre pobreza e criminalidade uma profecia autocumprida. Forma-se um círculo vi­cioso em que o indivíduo, para ter trabalho, precisa ter domicílio, registro, carteira profissional e uma situação civil legal. Sem trabalho, ele passa a fazer parte dos pobres e marginalizados sob constante vigilância policial, ,
O "EXERCITO DE RESERVA"
Há ainda outro aspecto a ser considerado. Essa população pobre e carente constitui o que Marx chamou de "exército industrial de reserva", isto é, um contingente populacional subempregado, mobili­zável para o trabalho sempre que a luta por melhores salários dentro das empresas chega a um ponto crítico.
Semiqualíficado, ou sem qualificação nenhuma, esse reduto de mão-de-obra está sempre pronto a aceitar salários mais baixos em troca de uma situação regular e um rendimento fixo. Vimos que o subemprego desses homens e mulheres não depende de uma incapaci­dade ao trabalho ou de uma indisposição para com o trabalho, mas de falta de elasticidade na oferta de emprego da indústria. Em épocas de crise, quando .os operários reivindicam melhores salários ou ade­rem as greves, trabalhadores empregados podem ser substituídos por essa mão-de-obra menos exigente e mais carente.
Sobre essa população já pesam o preconceito e o estereótipo da marginalidade. Além disso, sendo virtual competidora dos operários já integrados às indústrias, ela é discriminada também por estes. Existe preconceito dos próprios operários em relação a essa população mais pobre e semi-empregada, de quem querem se diferenciar.
Trabalhos que analisam o quanto a população operária é a favor da pena de morte mostram que essa adesão à repressão às populações carentes e faveladas decorre, a princípio, do fato de que os trabalha­dores são vítimas do banditismo. Além disso, existe o desejo do tra­balhador regular de se distinguir dessa "massa marginal" e estigma­tizá-la como perigosa e suspeita.
Por ocasião dos movimentos operários de metalúrgicos do ABC paulista, desde o final dos anos 1970, fotos nas primeiras páginas dos jornais mostravam que, após um grande número de demissões, filas de candidatos se apinhavam em frente das indústrias, prontos para ocuparem os lugares vagos. Fatos como esse tendem a instigar o conflito entre os trabalhadores regulares e o "exército de reserva".
Na Europa, assiste-se também à discriminação efetuada pêlos grandes sindicatos franceses e ingleses contra trabalhadores portugue­ses e espanhóis, que, segundo lideranças sindicais, "perturbam" o movimento operário por estarem sempre dispostos a trabalhar por me­nores salários.
Portanto, mesmo nas classes despossuídas, a pobreza inspira suspeita e ameaça. É por isso também que a Sociologia se dedica cada vez mais ao estudo da pobreza. Para perceber sua causa, sua dinâ­mica e sua influência no modo de pensar e ser das classes sociais.
Afinal, num mundo "regido" pêlos princípios democráticos eliberais, a pobreza é também um pouco de cada um, um espelho noqual percebemos, antes de tudo, a nossa própria fragilidade e a nossaprópria miséria.

Evolução do trabalho

EVOLUÇÃO DO TRABALHO
ALENCASTRO

A origem da palavra trabalho deriva do latim vulgar tripalium, que era o nome de um instrumento formado por três paus aguçados, com o qual os agricultores batiam o trigo, as espigas de milho, o linho, para rasgá-los, esfiapá-los. A maioria dos dicionários, contudo, registra tripalium como um instrumento de tortura, o que teria sido no início ou se tornado depois. O fato é que este termo está ligado à idéia de tortura e sofrimento, sentido esse que se perpetua até hoje, principalmente nos povos de língua latina.
De uma forma muito simplificada, podemos entender o trabalho como sendo a aplicação da energia humana (física e mental) em uma atividade determinada e útil. Pelo trabalho, como já dissemos, o homem se torna capaz de modificar a própria natureza, colocando-a a seu serviço.
O trabalho exercido de forma qualificada, mediante um preparo técnico-científico, específico para determinada atividade é comumente chamado de profissão. A profissão supõe continuidade e não uma atividade ocasional e também status social. A atividade de um engenheiro, por exemplo, é uma profissão, pois exigiu a capacitação de alguém para exercê-la.
Na linguagem bíblica, a idéia de trabalho também está ligada a do sofrimento e de punição: "Ganharás o seu pão com o suor de seu rosto" (livro do Gênese). Assim, é por um esforço doloroso que o homem sobrevive na natureza. Os gregos consideravam o trabalho como a expressão da miséria do homem, os latinos opunham o otium (lazer, atividade intelectual) ao vil negotium (trabalho, negócio). Mas será que sempre foi assim?
Podemos dizer que, considerado o "potencial de mão-de-obra" de uma sociedade, ou seja, suas forças produtivas, o trabalho usa para o desempenho de seu papel elementos materiais como a terra, animais, metais, ferramentas, energia, máquinas e outros insumos, também conhecidos como meios de produção. De acordo com a estruturação da propriedade e da manipulação desses meios de produção na sociedade em cada etapa histórica, configura-se o seu modo de produção, que, em outras palavras, se funda no tipo de relacionamento ou relações de produção existentes entre o trabalho e os detentores dos meios de produção.
Já nas sociedades primitivas o homem sentiu necessidade de lançar mão do trabalho que, em sua função mais primordial, era a defesa da unidade do clã, numa luta constante contra os perigos oferecidos pela natureza, seu clima hostil e os animais selvagens.
Foi pelo trabalho, ainda na era Neolítica, que o homem descobriu que agia melhor em comunidade do que sozinho ou em seu pequeno grupo familiar. Constatou que era um ser social, e adotou um estilo de vida comunitário, com fortes reflexos sobre a vida moral da época.
Há milênios, desde o surgimento da propriedade privada dos meios de produção, a prática dominante nas relações de trabalho ocidentais foi o escravismo, ou seja, o emprego do trabalho escravo na agropecuária, extração mineral e comércio.
Os gregos antigos, desprezavam o trabalho, deixando-o para os escravos, valorizando a única atividade considerada digna de um homem livre, que era o ócio dos filósofos. Buscavam inclusive inúmeras justificativas éticas para a escravidão.
Para Aristóteles a diferença entre os homens era natural, não havendo qualquer contradição na divisão existente, entre o trabalho manual e as atividades intelectuais e políticas. Segundo o filósofo a superioridade dos cidadãos explicava-se pelo fato de que eles definiam o sentido das coisas, fossem elas econômicas, sociais ou políticas. O cidadão grego não exercia o trabalho braçal pois tinha de ter tempo livre para se dedicar à filosofia e ao exercício da cidadania. Para que isso fosse possível os escravos executavam todas as atividades inferiores determinadas pela vontade das classes superiores.
Durante cerca de mil anos, período que foi da desagregação do Império Romano à Idade Média, as relações de produção na Europa Ocidental evoluíram do escravismo puro ao servilismo, ou seja abrandava-se a sujeição homem-homem, passando-se a outra menos direta, transformadora do homem em "servo de gleba", virtual prisioneiro da terra em que vivia, consumindo quase tudo que produzia, e produzindo por suas próprias mãos quase tudo de que necessitava. A Igreja Católica, pregando a adoração a Deus defendia o desapego às riquezas terrenas. Preocupada em organizar e manter seu poder temporal, ela condenava o trabalho como forma de enriquecimento. O trabalho era visto apenas como meio de subsistência, de disciplina do corpo e purificação da mente. Assim servia como instrumento de dominação social e de condenação a qualquer rebeldia contra a ordem estabelecida.
A ociosidade entre as classes senhoriais, assim como ocorrera na Grécia antiga, não era sinônimo de preguiça, mas de abstenção às atividades manuais para se dedicarem a funções mais nobres como a política, a guerra, a caça, o sacerdócio e o exercício do poder.
A partir do século XI a sociedade medieval européia sofreu profundas transformações. O renascimento do comércio e das cidades afetou e foi afetado pelas transformações do trabalho e das relações de produção. Daí até os séculos XVI e XVII a economia ampliou-se sucessivamente do restrito âmbito local ao regional, deste ao nacional (com a formação dos chamados estados nacionais modernos) e ao internacional: do quase nenhum mercado e escassa circulação monetária da Idade Média, chega-se a economia do dinheiro e dos múltiplos mercados dos séculos XVII-XVIII, com base no crescimento agrícola, na exploração colonial da América-África-Ásia e na diversificação do artesanato, cada vez mais se diferenciando em indústria.
A crise da ordem feudal, fundada na subsistência e na servidão, e o desenvolvimento do comércio e das atividades manufatureiras deu origem a uma nova estrutura social: a sociedade capitalista.
O crescimento do mercado não só irá conviver por algum tempo com antigas formas de servidão, como fará renascer a escravidão: o trabalho compulsório de africanos nas colônias da América.
Mas, para as elites que comandavam a implantação desse sistema, o trabalho livre era a forma ideal.
Essa é por excelência a concepção burguesa da liberdade individual do homem: ele é livre para usar a força de seu corpo como uma máquina natural e para escolher de forma soberana o que deseja para si mesmo. Se ao escravo na América não era dada a oportunidade da escolha, ao trabalhador europeu era concedido o direito soberano da liberdade.
Porém a busca da produção de excedentes para a troca no mercado mediante a introdução de novas técnicas de produção e de organização do trabalho fazia desaparecer a propalada livre escolha. Afinal, como seria possível o trabalhador sobreviver numa economia de mercado, senão submetendo-se às imposições de quem detinha os recursos que o sistema exigia? Aquele artesão, que na manufatura medieval detinha as ferramentas e uma autonomia no uso de seu tempo, desaparece, submetendo-se ao capital.
Ocorre, portanto, a separação entre o trabalhador e a propriedade dos meios de produção (capital, ferramentas, máquinas, matérias-primas, terras). Desse modo, podemos afirmar que a essência do sistema capitalista encontra-se na separação entre o capital e o trabalho.
Essa separação criou dois tipos de homens livres: o trabalhador livre assalariado, que vive exclusivamente de seu trabalho, ou seja, da venda de sua força de trabalho, e o burguês, ou capitalista, proprietário dos meios de produção. A novidade em relação aos modelos anteriores de sociedade é que, ao conceder a liberdade para todos os indivíduos, a sociedade estabeleceu uma espécie de contrato social, em que ficavam definidos os direitos e deveres de cada parte.

A ÉTICA CAPITALISTA DO TRABALHO
Se o trabalho como fator de enriquecimento pessoal era proibido na Idade Média, legitima-se agora, na ética da sociedade capitalista, como tábua de salvação divina. A riqueza não é mais vista como pecado, mas como estando de acordo com a vontade de Deus. Trata-se de uma vontade que se confunde com os interesses do mercado e do lucro, e que valoriza o trabalho enquanto força passível de gerar riqueza. Ele deixa de existir apenas para atender às necessidades humanas básicas. Sua finalidade principal é produzir riqueza acumulada.
Max Weber, em sua "Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo" diz que esta necessidade de acumulação de riquezas ultrapassou os limites do bom senso comercial e passou a ser um fim em si mesmo, uma concepção de vida, um ethos. Deixemos que ele fale:
De fato, o summum bonum desta "ética", a obtenção de mais e mais dinheiro, combinado com o estrito afastamento de todo gozo espontâneo da vida é, acima de tudo, completamente destituído de qualquer caráter eudemonista ou mesmo hedonista, pois é pensado tão puramente como uma finalidade em si, que chega a parecer algo de superior à "felicidade" ou "utilidade" do indivíduo, de qualquer forma algo de totalmente transcendental e simplesmente irracional. O homem é dominado pela produção do dinheiro, pela aquisição encarada como finalidade última de sua vida. A aquisição econômica não mais está subordinada ao homem como meio de satisfazer as suas necessidades materiais. Esta inversão do que poderíamos chamar de relação natural, tão irracional de um ponto de vista ingênuo, é evidentemente um princípio orientador do capitalismo, tão seguramente quanto ela é estranha a todos os povos fora da influência capitalista. Mas, ao mesmo tempo, ela expressa um tipo de sentimento que está inteiramente ligado a certas idéias religiosas. Ante a pergunta: Por que se deveria "fazer dinheiro do ganho dos homens?" o próprio Benjamim Franklin, embora fosse um deísta pouco entusiasta, responderia em sua autobiografia com uma citação da Bíblia, com que seu pai, intransigente calvinista, sempre o assediou em sua juventude: "Se vires um homem diligente em seu trabalho, ele estará acima dos reis". (WEBER, 1974, p.187)
A ociosidade, mesmo entre as classes abastadas, passou a ser sinônimo de negação de Deus. Só se mostrava a verdadeira fé pelo trabalho incessante e produtivo. O trabalho era a oração moral burguesa e capitalista. Quem se resignasse à pobreza não merecia a salvação divina.
Teóricos do novo sistema descobriram no trabalho a fonte de toda riqueza individual e coletiva. Em 1776, Adam Smith (1723-1790), afirmava que a riqueza de uma nação dependia essencialmente da produtividade baseada na divisão do trabalho. Por essa divisão, as operações de produção de um bem, que antes eram executadas por um único homem (artesão), são agora decompostas e executadas por diversos trabalhadores, que se especializam em tarefas específicas e complementares.
Com a produção mecanizada, o trabalho é glorificado como a essência da sociedade do trabalho. Não se concebe mais a possibilidade de existir ordem social fora da moral do trabalho produtivo.
Segundo Adam Smith, uma das características do ser humano, capaz de diferenciá-lo dos outros animais é uma certa propensão para trocar coisas. Essa propensão torna necessária a divisão do trabalho.
Outra diferença apontada por Adam Smith é que o homem, contrariamente a maioria dos animais, que ao se tornarem adultos ficam auto-suficientes, é muito dependente de seus semelhantes.
Existindo a necessidade de cooperação, mas tendo de conviver com seus impulsos egoístas, as sociedades elaboraram regras e leis morais para regular as ações humanas. As bases para a construção dessas regras são criadas a partir de uma espécie de "jogo de interesses". Ou seja, se necessitamos da ajuda das grandes multidões para vivermos e é impossível fazer amizade com todos eles para obter sua benevolência, podemos então mostrar ao outro que lhe é vantajoso nos dar o que precisamos, num sistema de trocas.
A ética capitalista defende a idéia de que o bem estar da coletividade é melhor obtido se apelarmos não ao altruísmo das pessoas, mas à defesa de seus interesses em relações de mercado. Desta forma o egoísmo (defesa do interesse próprio) é apresentado como a melhor forma de solucionar os problemas de um grupo social.
A eficácia econômica do sistema de mercado passou a ser o critério supremo para todos os juízos morais. A eficácia (critério técnico) passou a ser o critério ético fundamental. A ética capitalista é uma "ética" reduzida a uma questão puramente técnica.
Também fica claro, que a revolução tecnológica dos séculos XVIII e XIX, mais do que um progresso, significou a generalização de um projeto de controle social. As teses das classes dominantes revelam que o desejo de expansão de mercado e de aumento de suas riquezas passava pela necessidade da universalização dessa nova ordem social.
O que estava em jogo era o fim da autonomia do trabalho artesanal e a reunião e domesticação dos trabalhadores na fábrica. A divisão do trabalho defendida por Adam Smith teria a função de destruir o saber-fazer do artesão, subordinando-o à nova tecnologia da maquinofatura.
Para que essa sociedade voltada para o trabalho se viabilizasse, houve necessidade de construir um corpo disciplinar que envolvesse todos os indivíduos dentro e fora da fábrica. A ordem burguesa da produtividade tornava-se a regra que deveria gerir todas as instâncias do social. Para isso, instituiu-se um discurso moralizante que visava cristalizar no conjunto da sociedade a ética do tempo útil.
O tempo útil do trabalho produtivo deveria funcionar como um "relógio moral" que cada indivíduo levaria dentro de si.
O uso do tempo que não de forma útil e produtiva, conforme o ritmo imposto pela fábrica, passou a ser sinônimo de preguiça e degeneração. Só o trabalho produtivo, fundado na máxima utilização do tempo dignificava o homem.
A empresa dos dias atuais é um imenso cosmos, no qual o indivíduo nasce, e que se apresenta a ele, pelo menos como indivíduo, como uma ordem de coisas inalterável, na qual ele deve viver. Obriga o indivíduo, na medida em que ele é envolvido no sistema de relações de mercado, a se conformar às regras de ação capitalistas. O fabricante que permanentemente se opuser a estas normas será economicamente eliminado, tão inevitavelmente quanto o trabalhador que não puder ou não quiser adaptar-se a elas será lançado à rua sem trabalho. (WEBER, 1974, p.188)
Para tornar vitoriosa a nova ordem, procurou-se eliminar qualquer forma de resistência. Impôs-se um modelo de sociedade em que só o trabalho produtivo fabril imperava. Quem se encontrasse fora desse modelo era expurgado da sociedade. A grande massa de europeus que imigraram para América no século XIX pode ser tomada como exemplo desse expurgo.

Fonte: ALENCASTRO, M.A Importância da Ética na Formação de Recursos Humanos . Fundação Biblioteca Nacional, 1997




"Quem quer que deseje sucesso constante deve mudar sua conduta de acordo com os tempos" R. SHINYASHIKI
Glossário: globalização, pós-moderno e neoliberalismo



Questões Ideológicas
Sergio Granja
Qui, 09 de outubro de 2008 12:41

Em meados de 2007, eclodiu a crise das hipotecas imobiliárias na meca do capitalismo globalizado. Era a ponta de um iceberg. Desde então, de espanto em espanto, o pensamento único vem se desmilingüindo.
As cifras são estapafúrdias. Falou-se que a financeirização da economia capitalista produziu uma bolha de 600 trilhões de dólares em ativos financeiros para um produto bruto mundial de 60 trilhões de dólares. Essa é a pior crise do capitalismo desde 1929. Ela já vem produzindo reviravoltas inesperadas: a intervenção do Estado na economia vem sendo reclamada por economistas que até a véspera defendiam o receituário neoliberal, sem margem para controvérsia. E quem diria que o governo Bush promoveria a estatização de bancos? Para entender o processo que conduziu a essa crise geral, vale a pena compreender conceitos como globalização, pós-moderno e neoliberalismo, que dão conta desse modelo falido.Que é globalização A globalização é um processo deslanchado a partir da segunda metade do século XX que conduz à crescente integração das economias e das sociedades dos vários países, especialmente no que toca à produção de mercadorias e serviços, aos mercados financeiros e à difusão de informações. Mas a globalização é, sobretudo, a integração cada vez maior das empresas transnacionais, num contexto mundial de livre-comércio e de rarefação de regulação estatal, em que grandes corporações podem operar simultaneamente em muitos países diferentes e explorar em proveito próprio, com base nas vantagens comparativas, as variações nas condições locais. Isso se dá através da ação neocolonialista de empresas transnacionais e da pressão política e econômica exercida por organismos internacionais como o Fundo Monetário Internacional e a Organização Mundial de Comércio no sentido da renúncia às barreiras protecionistas. O cerne desse processo é econômico e responde aos interesses dos Estados Unidos da América.As novas tecnologias de telecomunicação e de processamento de dados contribuíram enormemente para a globalização, fornecendo sua base técnica. Mas essa integração do mercado mundial só foi possível com a implosão do bloco soviético: por um lado, isso permitiu que os Estados Unidos assumissem o papel de única superpotência no mundo; e, por outro, o capitalismo, como único sistema econômico mundial (dos regimes comunistas, de significativo no panorama internacional, só sobrou a China, e assim mesmo em processo de integração à economia capitalista), pôde se afirmar sem contestação. Que é neoliberalismo À política de desmanche do Estado ─ como agência econômica, de prestação de serviços públicos e de proteção social ─, de desregulamentação do mercado e retirada das barreiras protecionistas, de precarização das relações trabalhistas e do emprego deu-se o nome de neoliberalismo. Mas o Estado neoliberal continua operando na esfera econômica através de mecanismos tributários, fiscais e financeiros de transferência de renda para o setor privado e da contenção das lutas sindicais e populares. Trata-se da velha ideologia liberal, que correspondia à época do capitalismo de livre concorrência, só que ressurgida em condições históricas de crescente monopolização da economia, dos meios de comunicação de massa e da indústria cultural, apontando não para o pluralismo, mas para a homogeneização, a massificação, a uniformização do consumo de descartáveis, a tendência ao pensamento único. O discurso liberal é o mesmo, mas o acontecimento discursivo é outro.Antes de se generalizar como diretriz de política econômica dos países capitalistas ─ em reação contra-reformista à estagflação gerada pela crise de 1973-1979, que colocou em causa o welfare State ─, o neoliberalismo foi implantado, primeiro, no Chile de Pinochet e, em seguida, na Inglaterra de Margaret Thatcher.Perry Anderson considera que a Inglaterra de Thatcher encarnou a forma canônica do neoliberalismo:
"O modelo inglês foi, ao mesmo tempo, o pioneiro e o mais puro. Os governos Thatcher contraíram a emissão monetária, elevaram as taxas de juros, baixaram drasticamente os impostos sobre os rendimentos altos, aboliram controles sobre os fluxos financeiros, criaram níveis de desemprego massivos, aplastaram greves, impuseram uma nova legislação anti-sindical e cortaram gastos sociais. E, finalmente – esta foi uma medida surpreendentemente tardia –, se lançaram num amplo programa de privatização, começando por habitação pública e passando em seguida a indústrias básicas como o aço, a eletricidade, o petróleo, o gás e a água. Esse pacote de medidas é o mais sistemático e ambicioso de todas as experiências neoliberais em países de capitalismo avançado."
No Brasil, o neoliberalismo surge como política de governo sob a presidência de Collor; atinge o seu clímax no Proer e no auge das privatizações durante os governos FHC; e tem seguimento, atenuado por políticas compensatórias, nos governos Lula. As conseqüências sociais do neoliberalismo são graves: a combinação de desemprego, exclusão social e apelo ao consumo ─ numa sociedade atomizada pelo individualismo e pela competitividade, na qual o marketing dita a moda e as pessoas valem mais pelo que têm do que pelo que são ─ delineia um quadro de degradação da convivência social que fomenta a desesperança, a violência e a barbárie.Carlos Nelson Coutinho conceitua a época neoliberal como um período de contra-reformas.Que é pós-modernoA modernidade está geralmente associada à Segunda Revolução Industrial; a pós-modernidade, à Terceira Revolução Industrial.A Primeira Revolução Industrial foi o conjunto de transformações socioeconômicas iniciadas por volta de 1760, na Inglaterra (e mais tarde nos outros países), e caracterizadas especialmente pela substituição da mão-de-obra manual pela tecnologia (tear mecânico e máquina a vapor, a princípio), seguida da formação de grandes conglomerados industriais. A Segunda Revolução Industrial foi o conjunto de transformações socioeconômicas iniciadas por volta de 1870 com a industrialização de França, Alemanha, Itália, EUA e Japão, caracterizadas especialmente pelo desenvolvimento de novas fontes de energia (eletricidade e petróleo), pela substituição do ferro pelo aço e pelo surgimento de novas máquinas, ferramentas e produtos químicos (como o plástico). Entre 1909, quando Henry Ford criou a linha de montagem, inaugurando a produção em série, e o final do século XX, quase todas as indústrias se mecanizaram e a automação se estendeu a todos os setores fabris. A Terceira Revolução Industrial é o conjunto de transformações socioeconômicas iniciadas a partir da segunda metade do século XX, com o surgimento de complexos industriais e empresas multinacionais, o desenvolvimento das indústrias química e eletrônica, os avanços da automação, da informática e da engenharia genética, e respectiva incorporação ao processo produtivo, que passou a depender cada vez mais de alta tecnologia e de mão-de-obra especializada. Pós-moderno é o tempo que sucede ao período histórico que se abre com a primeira guerra mundial (1914-1918) – com a vitória da revolução bolchevique de 1917 – e se encerra com a debacle do bloco soviético. No Brasil, isso foi percebido como uma dupla queda: a da Ditadura Militar e a do Muro de Berlim."Pós-modernidade" – ensina Terry Eagleton – "significa o fim da modernidade, no sentido daquelas grandes narrativas de razão, verdade, ciência, progresso e emancipação universal que, como se acredita, caracterizam o pensamento moderno a partir do Iluminismo." Na perspectiva pós-moderna, essas ilusões, "ao fazerem flutuar ideais impossíveis diante de nossos olhos, nos afastam de todas as mudanças políticas modestas, porém eficazes, que temos reais condições de criar". E mais: para o pós-moderno,
"a verdade é o produto da interpretação, os fatos são construções do discurso, a objetividade é apenas aquilo que qualquer interpretação questionável das coisas tenha conseguido impor, e o sujeito humano é uma ficção, tanto quanto a realidade que contempla – uma entidade difusa e autodividida que carece de qualquer natureza ou essência fixa".
O pós-modernismo é a cultura da era pós-moderna. "A obra de arte pós-moderna típica é arbitrária, eclética, híbrida, descentralizada, fluida e descontínua, lembra o pastiche." Isso é especificado por Terry Eagleton nos seguintes termos:
"Fiel aos princípios da pós-modernidade, rejeita a profundida metafísica em favor de uma espécie de superficialidade forjada, jocosidade e falta de afeto; é uma arte de prazeres, superfícies e intensidades fugazes. Por desconfiar de todas as verdades e certezas estabelecidas, sua forma é irônica, e sua epistemologia relativista e cética. Por rejeitar toda tentativa de refletir uma realidade estável para além de si mesma, existe, de modo autoconsciente, no nível da forma ou da linguagem. Por saber que suas próprias ficções são infundadas e gratuitas, pode atingir uma espécie de autenticidade negativa apenas ao alardear sua irônica consciência desse fato, pervertidamente chamando atenção para seu próprio status de artifício construído. Impaciente com toda identidade isolada, e desconfiada da noção de origens absolutas, chama atenção para sua própria natureza 'intertextual', sua reciclagem paródica de outras obras que, por sua vez, nada mais são que o resultado de tal reciclagem." Todavia, o mais característico do pós-modernismo, para Terry Eagleton, é que
"a cultura pós-moderna volta sua aversão por limites e categorias fixos para a tradicional distinção entre 'grande arte' e 'arte popular', desconstruindo o limite entre elas ao produzir artefatos autoconscientemente populistas ou comuns, ou que se oferecem como mercadorias para o consumo enquanto fonte de prazer". Terry Eagleton coloca questões interessantes. Por exemplo:
"A pós-modernidade é a filosofia apropriada ao nosso tempo, ou será a visão de mundo de um exausto grupo de ex-intelectuais ocidentais revolucionários que, com típica arrogância intelectual, projetaram-na sobre a história contemporânea como um todo?"
Ou, visto por outro ângulo:
"Como acredita Frederic Jameson, estaremos diante da cultura do capital tardio – a penetração final do bem de consumo na cultura –, ou será que se trata, como insistem seus expoentes mais radicais, de um golpe subversivo em todas as elites, hierarquias, grandes narrativas e verdades imutáveis."
Uma cultura que semeia incertezas? Qual a função das incertezas semeadas? Desestabilizar o pensamento único ou diluir toda crítica? Seja como for, embora denuncie "as ilusões do pós-modernismo", Terry Eagleton reconhece que "a discussão certamente terá continuidade, sobretudo porque o pós-modernismo é a mais vigorosa de todas as teorias, com raízes num conjunto concreto de práticas e instituições sociais". Com efeito, não se pode ignorar "o consumismo, os meios de comunicação de massa, a política estetizada, a diferença sexual". Haroldo de Campos propôs o conceito de pós-utópico para dar conta deste curioso e desconcertante clima. Trata-se da suspensão do princípio-esperança (conceito de Ernst Bloch), que sustentara o imaginário modernista e alimentara seu caráter eminentemente crítico. Sergio Granja é pesquisador da Fundação Lauro Campos.
Globalização, pós-moderno e neoliberalismo


Questões Ideológicas
Sergio Granja


Em meados de 2007, eclodiu a crise das hipotecas imobiliárias na meca do capitalismo globalizado. Era a ponta de um iceberg. Desde então, de espanto em espanto, o pensamento único vem se desmilingüindo.
As cifras são estapafúrdias. Falou-se que a financeirização da economia capitalista produziu uma bolha de 600 trilhões de dólares em ativos financeiros para um produto bruto mundial de 60 trilhões de dólares. Essa é a pior crise do capitalismo desde 1929. Ela já vem produzindo reviravoltas inesperadas: a intervenção do Estado na economia vem sendo reclamada por economistas que até a véspera defendiam o receituário neoliberal, sem margem para controvérsia. E quem diria que o governo Bush promoveria a estatização de bancos? Para entender o processo que conduziu a essa crise geral, vale a pena compreender conceitos como globalização, pós-moderno e neoliberalismo, que dão conta desse modelo falido.Que é globalização A globalização é um processo deslanchado a partir da segunda metade do século XX que conduz à crescente integração das economias e das sociedades dos vários países, especialmente no que toca à produção de mercadorias e serviços, aos mercados financeiros e à difusão de informações. Mas a globalização é, sobretudo, a integração cada vez maior das empresas transnacionais, num contexto mundial de livre-comércio e de rarefação de regulação estatal, em que grandes corporações podem operar simultaneamente em muitos países diferentes e explorar em proveito próprio, com base nas vantagens comparativas, as variações nas condições locais. Isso se dá através da ação neocolonialista de empresas transnacionais e da pressão política e econômica exercida por organismos internacionais como o Fundo Monetário Internacional e a Organização Mundial de Comércio no sentido da renúncia às barreiras protecionistas. O cerne desse processo é econômico e responde aos interesses dos Estados Unidos da América.As novas tecnologias de telecomunicação e de processamento de dados contribuíram enormemente para a globalização, fornecendo sua base técnica. Mas essa integração do mercado mundial só foi possível com a implosão do bloco soviético: por um lado, isso permitiu que os Estados Unidos assumissem o papel de única superpotência no mundo; e, por outro, o capitalismo, como único sistema econômico mundial (dos regimes comunistas, de significativo no panorama internacional, só sobrou a China, e assim mesmo em processo de integração à economia capitalista), pôde se afirmar sem contestação. Que é neoliberalismo À política de desmanche do Estado ─ como agência econômica, de prestação de serviços públicos e de proteção social ─, de desregulamentação do mercado e retirada das barreiras protecionistas, de precarização das relações trabalhistas e do emprego deu-se o nome de neoliberalismo. Mas o Estado neoliberal continua operando na esfera econômica através de mecanismos tributários, fiscais e financeiros de transferência de renda para o setor privado e da contenção das lutas sindicais e populares. Trata-se da velha ideologia liberal, que correspondia à época do capitalismo de livre concorrência, só que ressurgida em condições históricas de crescente monopolização da economia, dos meios de comunicação de massa e da indústria cultural, apontando não para o pluralismo, mas para a homogeneização, a massificação, a uniformização do consumo de descartáveis, a tendência ao pensamento único. O discurso liberal é o mesmo, mas o acontecimento discursivo é outro.Antes de se generalizar como diretriz de política econômica dos países capitalistas ─ em reação contra-reformista à estagflação gerada pela crise de 1973-1979, que colocou em causa o welfare State ─, o neoliberalismo foi implantado, primeiro, no Chile de Pinochet e, em seguida, na Inglaterra de Margaret Thatcher.Perry Anderson considera que a Inglaterra de Thatcher encarnou a forma canônica do neoliberalismo:
"O modelo inglês foi, ao mesmo tempo, o pioneiro e o mais puro. Os governos Thatcher contraíram a emissão monetária, elevaram as taxas de juros, baixaram drasticamente os impostos sobre os rendimentos altos, aboliram controles sobre os fluxos financeiros, criaram níveis de desemprego massivos, aplastaram greves, impuseram uma nova legislação anti-sindical e cortaram gastos sociais. E, finalmente – esta foi uma medida surpreendentemente tardia –, se lançaram num amplo programa de privatização, começando por habitação pública e passando em seguida a indústrias básicas como o aço, a eletricidade, o petróleo, o gás e a água. Esse pacote de medidas é o mais sistemático e ambicioso de todas as experiências neoliberais em países de capitalismo avançado."
No Brasil, o neoliberalismo surge como política de governo sob a presidência de Collor; atinge o seu clímax no Proer e no auge das privatizações durante os governos FHC; e tem seguimento, atenuado por políticas compensatórias, nos governos Lula. As conseqüências sociais do neoliberalismo são graves: a combinação de desemprego, exclusão social e apelo ao consumo ─ numa sociedade atomizada pelo individualismo e pela competitividade, na qual o marketing dita a moda e as pessoas valem mais pelo que têm do que pelo que são ─ delineia um quadro de degradação da convivência social que fomenta a desesperança, a violência e a barbárie.Carlos Nelson Coutinho conceitua a época neoliberal como um período de contra-reformas.Que é pós-modernoA modernidade está geralmente associada à Segunda Revolução Industrial; a pós-modernidade, à Terceira Revolução Industrial.A Primeira Revolução Industrial foi o conjunto de transformações socioeconômicas iniciadas por volta de 1760, na Inglaterra (e mais tarde nos outros países), e caracterizadas especialmente pela substituição da mão-de-obra manual pela tecnologia (tear mecânico e máquina a vapor, a princípio), seguida da formação de grandes conglomerados industriais. A Segunda Revolução Industrial foi o conjunto de transformações socioeconômicas iniciadas por volta de 1870 com a industrialização de França, Alemanha, Itália, EUA e Japão, caracterizadas especialmente pelo desenvolvimento de novas fontes de energia (eletricidade e petróleo), pela substituição do ferro pelo aço e pelo surgimento de novas máquinas, ferramentas e produtos químicos (como o plástico). Entre 1909, quando Henry Ford criou a linha de montagem, inaugurando a produção em série, e o final do século XX, quase todas as indústrias se mecanizaram e a automação se estendeu a todos os setores fabris. A Terceira Revolução Industrial é o conjunto de transformações socioeconômicas iniciadas a partir da segunda metade do século XX, com o surgimento de complexos industriais e empresas multinacionais, o desenvolvimento das indústrias química e eletrônica, os avanços da automação, da informática e da engenharia genética, e respectiva incorporação ao processo produtivo, que passou a depender cada vez mais de alta tecnologia e de mão-de-obra especializada. Pós-moderno é o tempo que sucede ao período histórico que se abre com a primeira guerra mundial (1914-1918) – com a vitória da revolução bolchevique de 1917 – e se encerra com a debacle do bloco soviético. No Brasil, isso foi percebido como uma dupla queda: a da Ditadura Militar e a do Muro de Berlim."Pós-modernidade" – ensina Terry Eagleton – "significa o fim da modernidade, no sentido daquelas grandes narrativas de razão, verdade, ciência, progresso e emancipação universal que, como se acredita, caracterizam o pensamento moderno a partir do Iluminismo." Na perspectiva pós-moderna, essas ilusões, "ao fazerem flutuar ideais impossíveis diante de nossos olhos, nos afastam de todas as mudanças políticas modestas, porém eficazes, que temos reais condições de criar". E mais: para o pós-moderno,
"a verdade é o produto da interpretação, os fatos são construções do discurso, a objetividade é apenas aquilo que qualquer interpretação questionável das coisas tenha conseguido impor, e o sujeito humano é uma ficção, tanto quanto a realidade que contempla – uma entidade difusa e autodividida que carece de qualquer natureza ou essência fixa".
O pós-modernismo é a cultura da era pós-moderna. "A obra de arte pós-moderna típica é arbitrária, eclética, híbrida, descentralizada, fluida e descontínua, lembra o pastiche." Isso é especificado por Terry Eagleton nos seguintes termos:
"Fiel aos princípios da pós-modernidade, rejeita a profundida metafísica em favor de uma espécie de superficialidade forjada, jocosidade e falta de afeto; é uma arte de prazeres, superfícies e intensidades fugazes. Por desconfiar de todas as verdades e certezas estabelecidas, sua forma é irônica, e sua epistemologia relativista e cética. Por rejeitar toda tentativa de refletir uma realidade estável para além de si mesma, existe, de modo autoconsciente, no nível da forma ou da linguagem. Por saber que suas próprias ficções são infundadas e gratuitas, pode atingir uma espécie de autenticidade negativa apenas ao alardear sua irônica consciência desse fato, pervertidamente chamando atenção para seu próprio status de artifício construído. Impaciente com toda identidade isolada, e desconfiada da noção de origens absolutas, chama atenção para sua própria natureza 'intertextual', sua reciclagem paródica de outras obras que, por sua vez, nada mais são que o resultado de tal reciclagem." Todavia, o mais característico do pós-modernismo, para Terry Eagleton, é que
"a cultura pós-moderna volta sua aversão por limites e categorias fixos para a tradicional distinção entre 'grande arte' e 'arte popular', desconstruindo o limite entre elas ao produzir artefatos autoconscientemente populistas ou comuns, ou que se oferecem como mercadorias para o consumo enquanto fonte de prazer". Terry Eagleton coloca questões interessantes. Por exemplo:
"A pós-modernidade é a filosofia apropriada ao nosso tempo, ou será a visão de mundo de um exausto grupo de ex-intelectuais ocidentais revolucionários que, com típica arrogância intelectual, projetaram-na sobre a história contemporânea como um todo?"
Ou, visto por outro ângulo:
"Como acredita Frederic Jameson, estaremos diante da cultura do capital tardio – a penetração final do bem de consumo na cultura –, ou será que se trata, como insistem seus expoentes mais radicais, de um golpe subversivo em todas as elites, hierarquias, grandes narrativas e verdades imutáveis."
Uma cultura que semeia incertezas? Qual a função das incertezas semeadas? Desestabilizar o pensamento único ou diluir toda crítica? Seja como for, embora denuncie "as ilusões do pós-modernismo", Terry Eagleton reconhece que "a discussão certamente terá continuidade, sobretudo porque o pós-modernismo é a mais vigorosa de todas as teorias, com raízes num conjunto concreto de práticas e instituições sociais". Com efeito, não se pode ignorar "o consumismo, os meios de comunicação de massa, a política estetizada, a diferença sexual". Haroldo de Campos propôs o conceito de pós-utópico para dar conta deste curioso e desconcertante clima. Trata-se da suspensão do princípio-esperança (conceito de Ernst Bloch), que sustentara o imaginário modernista e alimentara seu caráter eminentemente crítico. Sergio Granja é pesquisador da Fundação Lauro Campos.

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